Como o meu parto me curou
Bem-vindo (a) novamente a esse espaço de informação, trocas e aprendizado. Para que entenda quem eu sou na fila na maternidade, gostaria de dividir (escancarar, na verdade) o que passei durante minha gestação e parto.
Há muitas verdades nuas e cruas aqui. Tudo que relato é verdade, inclusive a cena do unicórnio.
O texto está enorme, ora em primeira, ora em terceira pessoa. Fui eu, mas na maioria do tempo, fomos nós. Já aviso que contém cenas de nudez. Não a nudez da roupa, que é esperada em todo parto. É a nudez da alma. Sem ela, eu não conseguiria ter chegado até aqui.
O meu relato também não começa nas primeiras contrações, começa meses antes, ainda grávida. Talvez você questione o motivo de tamanha exposição. Se o que eu dividir aqui servir para ajudar uma só pessoa, já valeu a pena.
Sou Melina, mãe da Helena (de nove meses) e sempre sonhei em sentir dores de parto. Sempre quis ver meu corpo trabalhar, entender que onda era aquela. Era uma experiência que eu precisava viver: ver meu corpo funcionar como ele foi feito para funcionar.
O primeiro contato com a humanização ocorreu durante a realização de uma reportagem sobre o assunto há cinco anos: https://folha.com/no1187425.
De lá para cá foram muitas conversas com o Dennys, meu maridão, e com a dona Aurora, minha mãe, até ficarem seguros e embarcarem comigo nessa viagem.
Dizer que tentaria o parto normal causava uma espécie de pânico em muitas pessoas, e tudo que não queríamos era sentir medo ou sermos desencorajados. Compreendemos o medo de todos, mas estávamos certos dos benefícios que a bebê e eu teríamos.
Por isso, decidimos manter em segredo nossa escolha. Nossa resposta era: “se não nascer por baixo, nascerá por cima, mas que vai nascer, é certeza!”.
O que nós queríamos era o respeito às nossas vontades e às evidências científicas.
A primeira consulta com o médico humanizado (Paulo Noronha) foi em família. Falamos de tudo, por muito tempo. Ocorreu na Casita, em Santo André.
Os três curtiram muito a vibe dele e o atendimento humanizado, que até então era novidade pra gente.
No sexto mês ganhei a companhia de profundas dores no assoalho pélvico. Dor pra andar, sentar, virar na cama. Cada vez piores. Era a relaxina, um hormônio que “amolece” as cartilagens e prepara o corpo pra passagem de um bebê. Aprendi a conviver com ela e pensava que era um mal necessário –já que queria tanto ter um parto natural. Mas, ô dorzinha chata!
Pré-natal mês a mês e outro monstrinho apareceu: diabetes gestacional. Foi um soco no estômago. Não quis contar pra ninguém. Muito medo de ter que tomar insulina. Senti culpa. Por que não me cuidei antes?
Paulo indicou dieta e exercícios. Fui à nutricionista. A possibilidade da minha filha ter consequências por causa do “meu relaxo” me entristecia demais.
Na primeira semana sem açúcar, a glicose caiu bastante. Nas semanas seguintes, firme na dieta, voltou a subir. Era desesperador furar o dedo e aguardar o resultado do dextro. Tive que abolir quase que 100% dos carboidratos. Até os integrais elevavam a glicose (meu problema sempre foi com a glicemia em jejum).
Foi quando o médico deixou claro que poderia esperar o nascimento dela até a 40ª semana. Estava de 34 semanas. Mesmo controlada, a glicemia poderia alterar o tamanho da bebê e causar hipoglicemia nela.
Tudo que eu não queria era a indução. Como disse, não queria tomar remédios, desejava entrar em trabalho de parto naturalmente. Aquilo me derrubou. Chorei escondida muitas vezes.
O desespero por açúcar me fazia escapar da dieta. Só que o dextro era implacável. Sofria ao ver o marcador muito acima de 90 em jejum e doía ver a preocupação da minha mãe que se esforçava ao máximo pra fazer as minhas refeições. Não podia fazer isso com ela também.
Comecei as sessões de fisioterapia pra preparar o períneo. O Dennys aprendeu vários exercícios que deveríamos fazer até o parto para evitar lacerações. Porém me incomodavam muito. Sangrava. Pedi ajuda pra Suelen Freitas, a fisioterapeuta, e ela me explicou com muita delicadeza que eu tinha vaginismo. Oi? Como assim? 33 anos nas costas e descubro semanas antes do parto que meu períneo é temperamental?
Isso explicava muita coisa. Sempre me senti muito incomodada durante consultas ginecológicas e exames. Era como se me estuprassem cada vez que fazia um exame. Nunca ninguém me orientou a buscar ajuda. E eu achava que aquilo era normal.
Descobrir o vaginismo abriu um calabouço do passado. Já havia liberado perdão há anos, mas meu corpo ainda trazia a marca de uma violência sofrida.
Meu marido, sempre carinhoso e parceiro, fazia os exercícios e em pouquíssimo tempo deixei de sentir dores durante o alongamento. Os treinos com o epi-no também ficaram mais fáceis.
Diariamente a Suelen me escrevia. Ora perguntando dos exercícios, ora da glicemia. Eu me sentia tão acolhida!
Outros monstros do passado decidiram me visitar. Desde a infância tive problemas de relacionamento com minha mãe. Inconscientemente, a culpava por muitas coisas que ela não tinha culpa alguma. Trazia mágoas antigas no coração. A maior, o divórcio dela e do meu pai. E ela sempre do meu lado e se desdobrando diariamente por mim.
Em um daqueles dias (tive pesadelo, acordei com a glicemia alta, dor pélvica, lembranças ruins), fomos pra Casita, numa sessão de fisioterapia. Estava afastada do trabalho por uns dias.
A Su perguntou: tudo bem? Eu desabei. Chorei, perdi o fôlego, me descontrolei. Ela perguntou o que me incomodava e eu nem sabia por onde começar. Vomitei tudo. Estava com medo da indução, minha glicemia em jejum não baixava, eu tinha medo de ter os mesmos muros com minha filha. Estava com medo dela se sentir rejeitada porque sempre sonhei em ter um menino e não uma menina (era o pavor de ter uma filha e ela passar pelo que eu passei quando criança).
Creio que Deus usou a Su para me curar. Ela me ouviu, falou um pouco sobre ela, mostrou saída pros meus medos, e ali, em uma hora de conversa, foi como se arrancasse minhas dores com a mão.
Todos choraram naquela sessão. Foi sobrenatural.
Nos dias seguintes, minha mãe começou a desabafar sobre muitas coisas. Falou sobre os monstros do passado dela. Passei a compreender tantas coisas. Nosso relacionamento estava sendo curado. Que experiência! O olhar humanizado de uma pessoa desencadeou cura para minha família.
Não tinha mais dúvida: a Suelen era a doula que eu procurava.
Na sequência, uma consulta com a obstetriz Bianca Rocha, outra profissional incrível, e também apaixonada pela humanização. Ela também me ajudou a entender o processo fisiológico do parto e me deixou bastante segura.
A equipe estava fechada. Que alívio! Estava com 36 semanas.
A Su foi atrás de mais informações sobre diabetes e me mandou uma série de exercícios que ajudariam. Sentimos como se ela tivesse comprado a nossa briga.
Caminhadas, exercícios musculares, dieta, acupuntura para indução. Tudo que era preciso eu fiz. Tudo.
37, 38, 39 semanas. Muitas pessoas escrevendo e perguntando se ela tinha nascido. E o medo da indução outra vez me rondava.
Eu teria consulta no sábado, dia 25 de fevereiro. Se nada ocorresse até lá, Paulo me internaria no domingo.
Na noite de sexta, a fatídica sexta-feira, compramos pizza. Pra mim, era a despedida da barriga. Uma era de calabresa com pimenta –porque eu sabia que a pimenta poderia ajudar. Por falar em ajuda, tomei óleo de rícino, porque né? Se há métodos, vamos usá-los.
Estávamos muito cansados, eu não vinha dormindo bem nos últimos dias, mas eu precisava me movimentar. Do meu lado, sempre, o maridão. Eu, com “sangue nos zóio” caminhei, caminhei, caminhei, voltas e mais voltas ao redor do prédio. Subia e descia a escada loucamente com um só pensamento: indução, não! Em casa, alongamento, muitos exercícios musculares e outros tantos agachamentos. Dei meu máximo, mas cansei.
Tomei banho e deitei. Mas comecei a sentir cólica. Quem mandou enfiar o pé na jaca e comer tanta pizza pra despedir da barriga? Deve ser o óleo de rícino. Ele solta o intestino.
Passei mal. Vomitei, tive diarreia. Várias vezes. Estava muito cansada, mas não conseguia deitar. Dava cólica. E ritimada. Eram 3h.
Fiquei no rebolation sobre a bola de Pilates de mão dada com o Dê. Dor vai e vem.
Pera !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Vamos cronometrar essas dores. Vou escrever pra Su. Vai que…
Eram 6h30 e ela me liga na hora. Foi emblemático! Veio a cólica, pedi pra ela esperar. Corri pro banheiro.
Cataploftttttttttt
Su, A BOLSA ESTOUROU !!!!! (Leia com a maior ênfase que a professora de português lhe ensinou).
“Mel, me fala a cor do líquido. Vai pro chuveiro, estou indo praí”.
Ela se teletransportou. Só pode.
“Respira, Mel. Isso, joga o ar lá pra baixo. Isso, muito bem”.
Eram as contrações. Igualzinho dizem. Vinham como uma onda e me abraçava. Doíam, depois passavam. Percebi que era a mesma dor sempre, e que quando lutava contra ela (me contorcendo, erguendo o pé) doía mais. Quando “aceitava” e jogava o ar lááá pra baixo, conseguia lidar muito bem com ela. Quando passavam, era um alívio delicioso.
Abraçar o Dennys também diminuía a dor.
“Isso Mel, respiiiira. Seu corpo vai começar a liberar endorfina e você vai lidar melhor com a dor”.
A Bianca (obstetriz) chegou e ouviu os batimentos da Helena. Estava tudo bem.
Reparei que quando eu fechava os olhos e me entregava, as contrações fluíam. Quando me preocupava com algo externo, paravam.
Tomei uma vitamina deliciosa e chupei a laranja mais doce de toda minha vida. Estava com diabetes e há meses não comia frutas. Desceram maravilhosamente.
Como era bolsa rota, cogitaram chamar uma acupunturista pra estimular.
Nessa hora fui para o corredor. Dennys colocou um louvor que falava sobre “confiar, descansar e se lançar”. Bati no peito e pensei: manda que eu aguento!
Pra quê? Entrei na fase ativa na hora! Deus foi rápido!
Só queria andar pra lá e pra cá. Estava de olhos fechados. Esbarrei em todos os quadros da parede da minha mãe. Pra lá e pra cá.
Su, tá vindo outra… mais uma… E mais outra, e mais outra. Senti as dores, mas não sofri em nenhum momento.
Bianca aproveitou um intervalo e fez o toque. Sete centímetros!! Escutei a ligação pro Paulo e ouvi a frase que soou como música: estamos indo ao hospital.
Descemos as escadas. Outra contração. Eu me joguei sobre o carro na frente do prédio. Lembro do vizinho do sobrado da frente, sentado no chão, tomando uma cervejinha. Li nos seus olhos: “Eita, que vai nascer!!!!”. Eram 13h.
Fomos para o hospital. A Su me dava a mão e dizia pra eu apertá-la. Ela me abraçava nas curvas e massageava um ponto mágico nas costas. Eu vocalizava nos intervalos das contrações. Que delícia!
No hospital, às 13h50, aquele momento balde de água fria chamado triagem. Contrações a todo vapor e as enfermeiras pedindo pra eu ficar deitada.
Ter contrações deitada é insuportável. Mais insuportável ainda foi a prancheta cheia de perguntas que elas queriam que eu respondesse naquele momento.
Gente do céu, não rouba o meu barato!
Paulo chegou e subimos todos pro delivery (sala de parto humanizado).
Eu na maca, Dennys do lado, Suelen, Bianca, enfermeiras. Não cabia minha mãe com o carrinho com as nossas malas naquele elevador. Ela ficou.
Foi uma fração de segundo. Olhei pra ela antes do elevador fechar. Queria dizer tanta coisa. Passou tanta coisa na minha cabeça. Decidi apenas abrir o meu melhor e maior sorriso. Pedi ao Espírito Santo que revelasse a ela o que eu queria dizer. Dona Aurora também sabia o quanto eu estava feliz.
Enquanto o elevador fechava a porta e nós nos olhávamos, pensei: da próxima vez que nos encontrarmos, ela será avó e eu mãe.
No delivery, entrei na banheira. Água quentinha, deliciosa. Apesar de ter relaxado bastante, não achava posição confortável.
Su sugeriu colocar uma música. Não quis. Apesar de passar dias selecionando diversas canções pro parto, preferi o silêncio. Aquele louvor que ouvi em casa mais cedo bastou.
Helena já estava ali. Pediram pra eu tocar, não quis. Pensei até que fosse um “truque” deles pra eu relaxar. Achei que ficaria ali por muitas horas ainda.
Não conseguia concentrar a força para expulsá-la. Tinha consciência de que estava fazendo força de forma errada, mas não conseguia.
Fora da água, na banqueta, senti a queimação. Reclamei. Virei pra Su e disse que não conseguiria. Ela respondeu que “nós” conseguiríamos, e que era aquilo que a gente sempre quis. Pediu para eu tocar mais uma vez na Helena. E não é que minha garotinha estava ali, gente?
A equipe sabia muito bem o que nós queríamos e principalmente o que não queríamos no parto e nós confiamos plenamente neles. E valeu a pena.
Helena estava com a cabeça virada e a mãozinha do lado do rosto.
Enquanto a Bianca me abanava, o Paulo estava sentado no chão. Muito centrado, foi conduzindo tudo com muita tranquilidade. Não pedi anestesia (nem lembrei dessa possibilidade na hora), mas ele viu minha dor.
Senti então uma vontade absurda de fazer o número dois, vulgo cocô. Puts! E agora?
Nessa hora um unicórnio muito fofinho passou sobre minha cabeça e gritou lentamente: você perdeu sua dignidaaaaade. Sério!
Ufa, não era cocô. Era a bebê descendo.
O bloqueador de nervo pudendo, uma espécie de anestesia (muito bem indicada) facilitou o expulsivo. Helena chegou às 15:53.
Dennys, que me sustentou em todo o tempo, nos abraçou. Nós conseguimos!
Com a bebê no colo, fui pra maca ao lado onde controlaram rapidamente minha hemorragia.
Paulo e Suelen me avisam que aquela membrana temperamental tinha ido embora durante o parto. 3.325kg e 47 centímetros. Nenhuma crise de hipoglicemia. A diabetes não afetou minha menina.
Dra. Nicole (pediatra) entrou em ação e Heleninha conheceu o meu peito.
Pra fechar com chave de ouro, minha mãe entrou no delivery. Ela me beijou e juntas choramos. Dona Aurora sabia muito bem o que eu havia passado até chegar ali.
Agora, você também sabe.
Como a Bianca disse, o parto foi só a cereja do bolo. Pari a Helena, mas sobretudo, pari medos, traumas e vergonhas.
Não sou mais mãe por causa desse parto. Sou uma mãe que desejou ardentemente experimentar o corpo trabalhar e conseguiu.