‘Terrible two’ não existe, afirma pediatra Carlos Gonzáles
Você já ouviu falar no “terrible two”? A expressão é usada quando o bebê chega perto dos dois anos e passa a ser mais contundente em relação aos seus desejos. Dizem que é a adolescência deles. Gritos, birras, um monte de “não”, “não quero” e “é meu” aparecem de uma hora para outra.
Contrário ao uso do termo, o pediatra espanhol Carlos Gonzáles diz , inclusive, que ele não existe. Autor de livros sobre amamentação, criação com apego e alimentação infantil, médico diz que a expressão é uma criação americana para designar uma fase em que a criança está apenas se entendendo como indivíduo.
A criação com apego, defendida pelo pediatra, entende que ataques de birra não são para manipular os pais. Eles servem para comunicar necessidades -que podem ser sono, irritação porque os pais passam muitas horas longe, algum medo, frustração e por aí vai. Como o cérebro deles ainda é imaturo, as crises costumar ganhar proporções assustadoras porque eles ainda não sabem como se controlar (às vezes nem a gente que é ‘cavalo veio’ consegue, quem dirá eles).
Em entrevista ao Maternar, Carlos Gonzáles fugiu de fórmulas milagrosas para ter sucesso na criação dos filhos. “Não existem soluções fáceis e garantidas”, diz. Para ele, toda criança tem direito a ser bem tratada, receber carinho e principalmente ser confortada quando chora e não silenciada, como historicamente os pais faziam com os filhos. E para que essa conexão ocorra, é preciso investir tempo.
Por fim, não quis citar erros cometidos na criação dos filhos e nem “se gabar” dos acertos. Confira abaixo:
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Maternar – A saúde emocional da criança pode refletir em sua alimentação?
Carlos Gonzáles – Muitas crianças e adultos perdem o apetite quando estão tristes ou preocupados. E também há quem coma compulsivamente devido a problemas emocionais. Mas me preocupa mais o problema inverso, como a alimentação pode afetar a saúde emocional. Com o absurdo costume de tentar forçar as crianças a comer (com prêmios ou castigos, com trotes ou ameaças, com distrações ou insistência, com chantagem emocional). Isso pode causar conflitos diários na família e transformar a hora de comer em um inferno para todos –especialmente para a criança.
Maternar – Quais dicas o senhor dá para que as crianças sejam emocionalmente saudáveis?
Carlos Gonzáles – Não existem soluções fáceis e garantidas. Você não pode dizer “faça isso e seu filho será emocionalmente saudável”, como não se pode dizer “faça isso e seu filho nunca terá febre”. Acho que temos que dedicar tempo e atenção às crianças, tratá-las com carinho e respeito, e se algum dia tiverem um problema emocional –ou tiverem uma febre– faremos o possível para ajudá-las.
Maternar – A introdução do açúcar aos 2 anos pode afetar o paladar da criança?
Carlos Gonzáles – Acostumar-se a comer alimentos doces desde a infância é, provavelmente, consumir açúcar pelo resto da vida. Mas o inverso, evitar açúcar nos primeiros meses ou anos de vida não significa ter uma alimentação mais saudável no futuro. Adolescentes e jovens estão comendo cada vez pior, apesar de ter se alimentado de comidas sem sal e sem açúcar nos primeiros meses. O problema é que os adultos, a sociedade em geral, estão consumindo quantidades enormes de açúcar e sal com pão, bolos, refrigerantes, alimentos pré-cozidos, sucos de frutas (comer frutas é saudável, beber suco de frutas não é saudável – quando liquefeito, o açúcar intrínseco da fruta transforma-se em açúcar livre). E apesar de darmos ao bebê uma dieta especial, depois de dois ou três anos, ele estará comendo o mesmo que os pais. Portanto, o importante é melhorar a dieta dos pais. Se você comer saudável, seu filho pode comer o mesmo a partir dos seis meses. Se você não comer de forma saudável, de que adianta seu filho se alimentar saudavelmente por alguns meses?
Maternar – Cada vez mais pais procuram se informar sobre criação com apego, parto respeitoso e amamentação prolongada. O que essa mudança na criação deve afetar nas futuras gerações?
Carlos Gonzáles – Não sei. Já veremos. Talvez o aquecimento global afete as gerações futuras mais do que qualquer coisa que fazemos. Mas a questão não é essa. Uma mulher tem o direito de ter o seu parto respeitado e receber as informações e apoio necessários para amamentar a hora que ela quiser. Uma criança tem o direito de ser bem tratada, de receber carinho e ser confortada quando chora. E tudo isso tem que ser gratuito, espontâneo. Então, nem as crianças e nem as gerações futuras têm obrigação de, no futuro, serem mais saudáveis (física ou emocionalmente), mais inteligente ou mais amigáveis para valer o “esforço” de criá-los com amor. Nós fazemos a coisa certa agora porque é a coisa certa, e o futuro ninguém sabe.
Maternar – Educar uma criança é uma tarefa muito difícil e exige paciência dos pais. Comportamentos desafiadores de crianças acima de dois anos levam muitos pais a perderem a paciência e até reproduzirem violência em seus filhos. Como os pais devem entender essa fase, que até chegam a chamá-la de terrible two? Existe o terrible two?
Carlos Gonzáles – Não, não há o “terrible two”. E a prova é que você precisa falar em inglês, já que não há uma expressão em português ou espanhol para se referir a isso. Eu nunca tinha ouvido falar de “terrible two” até quase 30 anos e dois filhos, quando comecei a ler livros americanos. Agora, por exemplo, eu tenho um neto de dois anos e ele não poderia ser mais amável, gentil e carinhoso.
Maternar – No Brasil, há uma cultura forte do palpite. Como driblar tantos palpites e justificativas sociais quando os pais decidem “quebrar regras” consideradas inquebráveis?
Carlos Gonzáles – Qualquer mudança social produz estranheza e comentários. Eu ainda lembro quando a grande discussão era se as mulheres poderiam usar calças. E, antes disso, a presença das mulheres nas universidades causava desconforto. Os anos passam, as pessoas se acostumam e esses não são mais problemas. Devemos compreender que aqueles que criticam as mudanças, geralmente, o fazem simplesmente por hábito, não por ódio ou porque têm profundas convicções. Portanto, devemos fazer o que achamos conveniente, e não nos preocuparmos com o que as pessoas dizem.
Maternar – Por que muitas pessoas ainda entendem criação com apego como criar filhos sem regras?
Carlos Gonzáles – Talvez tenhamos passado tanto tempo acreditando que os pais não têm regras que agora existe uma reação na direção oposta. Mas sim, nós pais, assim como as crianças, temos regras. Não podemos gritar, insultar, ridicularizar, punir e, muito menos, agredir em nossos filhos.
Maternar – Se uma criança faz birra no avião, no mercado ou numa fila, por exemplo, pessoas ao redor olham feio, como se a culpa fosse dos pais. Quando os pais agem de forma enérgica, quem está ao redor parece aprovar a reação. Na sua opinião, por que isso acontece?
Carlos Gonzáles – O choro de uma criança causa uma forte reação em um adulto. Porque é para isso que existe o choro: para que os adultos façam alguma coisa para confortá-lo. Mas as regras sociais nos impedem de pegar no colo e confortar uma criança desconhecida, e essa sensação de impotência faz com que o choro nos pareça especialmente irritante. Na realidade, o público não aprova os pais que se comportam de maneira enérgica. Se uma criança chora e os pais gritam ou dão um tapa, ela vai chorar mais. E isso, é claro, não agradará o público. O que as pessoas querem é que os pais façam algo para que a criança pare de chorar o mais rápido possível.
Maternar – Onde considera ter acertado e onde considera ter cometido erros na criação dos seus próprios filhos?
Carlos Gonzáles – Certamente cometi erros que não vou contar a todos, e também tive sucessos, dos quais não penso em me vangloriar.
Carlos Gonzáles participará do bate-papo “Alimentação, amamentação e criança” promovido pela Editora Timo (responsável pelas publicações do médico no Brasil) no dia 10 de novembro, às 8h30 no Teatro Fecap (av. da Liberdade, 532, Liberdade, São Paulo).
Pais e mães interessados no assunto podem adquirir os ingressos no site: https://www.sympla.com.br/carlos-gonzalez-em-sao-paulo—edicao-2019__629627.
Ele também passará por Fortaleza, Vitória e falará com profissionais de Saúde, em São Paulo.