Clareza sobre nossas feridas evita ferimentos emocionais nos filhos
Ter clareza das nossas dores emocionais é o melhor caminho para não repeti-las em nossos filhos. Esse é um dos pilares da Teoria do Apego, que defende a criação segura para que a criança se desenvolva plenamente em todas as áreas.
Pais que apanharam na infância tendem a agir de forma violenta com seus filhos. Lembrando que gritos, ameaças, castigos e até o silêncio, ao ignorar um pedido de ajuda são considerados violência também.
Esse comportamento ocorre porque os pais repetem o padrão que receberam no passado. É o mais familiar e o que está internalizado dentro deles, independentemente de ser o melhor, é o conhecido e o mais fácil de ser acessado, explica a psicóloga e especialista em Teoria do Apego Arieli Groff.
Para encerrar esse ciclo, ela defende o autoconhecimento. “Não tem mágica, receita pronta ou rápida para isso. E isso requer coragem, disponibilidade interna, entrega e amor”, diz a especialista que lançou o livro “Quando uma Mãe Nasce: Confissões, Dores e Amores da Maternidade” (Editora Pirililampos).
Na obra, a autora aborda assuntos caros à maternidade, como raiva dos filhos, saudade da vida de antes, solidão e o cansaço mental por ter que tomar todas as decisões relacionadas à criança.
Dividido por assuntos, numa espécie de diário, Arieli também fala sobre a convivência forçada durante a pandemia, o dia da primeira birra pública e a fuga para o banheiro na expectativa de ter apenas um minuto de silêncio –o sonho de toda mãe.
“Minha filha tem minha melhor versão em vários momentos. Mas não é brincando de boneca”, revela a psicóloga destacando o mito da mãe perfeita. “Não somos boas em tudo. E não devemos nos cobrar isso. É cruel. É utópico”, afirma.
Reconhecer sentimentos, outro pilar da Teoria do Apego, aparece no capítulo “Hoje Tive Raiva”, onde ela ralata quando a filha a tirou do sério. “Ser mãe não me canonizou e ela ser minha filha não lhe dá o título de criança mais legal do universo. Ter raiva da minha filha foi o sentimento mais justo e honesto que pude oferecer. E eu disse o que estava sentindo. Nossa relação continua, com ainda mais verdade”, conta a mãe de Maitê, hoje com cinco anos.
“Criança pede presença. A cada comportamento difícil ou ataque de fúria nossos filhos estão nos dizendo ‘me olha’, ‘me ajuda’, ‘ não estou conseguindo sozinho’, ‘preciso de você’. É fácil amar quando ela está brincando de forma criativa e inteligente, de banho tomado, sendo meiga e dormindo como um anjo”, diz o livro.
O seu puerpério foi muito pesado? O que você sentiu e quanto tempo ele durou?
Ele não foi necessariamente pesado, mas me trouxe surpresas e vivências que mesmo já atuando com infância na clínica como psicóloga, eu não tinha clareza de como eram de fato vividos pelas mães. Me trouxe estranhamento e a angústia de por vezes não conseguir nomear o que eu sentia, e com isso, um sentimento de me ver só em tantos momentos, mesmo rodeada de uma rede de apoio afetiva e presente. Para mim foi aos dois anos da Maitê que senti e consegui retomar algumas questões mais voltadas a mim e conseguir me priorizar em algumas coisas. No final do primeiro ano eu senti um alívio do tipo “conseguimos, vivemos e sobrevivemos” e ao final dos dois anos dela veio esse sentimento de me ter de volta.
Por que a ideia de mãe perfeita faz tantas mães reféns?
Percebo que esse estranhamento que senti é também vivido por muitas mulheres, onde existe uma romantização de como é a chegada de um bebê e pouco se fala de sentimentos que não são vistos como positivos socialmente, como a tristeza, raiva, cansaço, questionamentos sobre a escolha de ter tido filhos, mas que se fazem presentes na realidade de muitas mães. E então quando a mulher sente isso, se percebe sozinha, inadequada, culpada de não sentir só amor e gratidão 24 horas por dia, que também estão presentes, mas não são exclusivamente o que se sente. E com isso, muitas mulheres se envergonham de compartilhar suas vivências, sentimentos, medos, cansaços, como se não tivessem o direito de reclamar. Acredito que esse é um aprisionamento que só iremos abrir aos poucos, com informação, diminuição da cobrança social em cima das mães e rede apoio, individual e coletiva, como sociedade.
Você conta sobre alguns momentos de fuga para cuidar de si, nem que seja no sofá para ter um tempo para ver uma série, ou no banheiro para fazer um xixi em silêncio. O quanto essas fugidinhas te ajudaram a não pirar ou levar a maternidade de forma mais leve?
Me ajudaram muito. Foram quase dois anos com a sensação que a minha vida não me pertencia mais, eu descansava enquanto trabalhava (atendimento em consultório). Esses pequenos momentos me traziam a sensação de ter o controle sobre alguma coisa, por menor que fosse, de que eu ainda tinha autonomia sobre meu tempo e espaço para escolher algo que fosse por mim e para mim.
Você assume que não gosta de brincar, que seu melhor é encontrado em outros momentos com a Maitê. Quando você descobriu isso e aceitou que brincar, algo tão importante para uma criança não era muito sua praia?
Falo desse brincar mais tradicional, especialmente com meninas, que se espera que se brinque de bonecas, por exemplo, e que a mãe goste disso. Interagimos de outras formas, mas teve o tempo em que ainda me cobrei que precisava gostar de tudo que minha filha tivesse interesse em brincar. Até que entendi que aceitar quais eram as minhas brincadeiras favoritas e que eu não precisava gostar de tudo, me trouxe alívio e assim pude me entregar com mais prazer naquilo que gostava e até mesmo nas brincadeiras que não gostava muito, pois agora não havia cobrança, mas o amor de fazer algo pela felicidade dela.
Você fala sobre sentir raiva da sua filha em alguns momentos. Muitas mães têm medo de assumir isso e você fala com muita naturalidade sobre essa raiva. Alguma mãe já te deu feedback sobre sentir isso e estar aprisionada no medo das opiniões alheias sobre esse sentimento?
Muitas. Alguns sentimentos não são socialmente validados e tampouco valorizados. A raiva é um deles e se mostra como se fosse incompatível com a maternidade. Mas os sentimentos não são nem bons nem ruins, apenas são, o que fazem deles terem um aspecto mais positivo ou negativo é o que escolhemos fazer com eles, e isso vem de um lugar de consciência, autoconhecimento, empatia consigo mesma, o que leva a possibilidade de uma regulação emocional. Com isso, muitas mães me relatam que se sentem julgadas, culpadas, inadequadas e envergonhadas de assumirem o quanto seus filhos tantas vezes despertam raiva, aumentando o senso de solidão que leva à mais raiva. A raiva surge como a percepção de não se sentir vista, sem apoio, percebendo que chega em um limite e/ou quando se vê com recursos internos escassos para lidarem com os filhos. A raiva é uma expressão de cobranças externas e internas, frustrações e desamparos vividos pelas mães.
O que a pandemia despertou de melhor em você como mãe ? E o pior?
Ter minha filha 24 horas por dia em casa me fez agradecer por ter o privilégio de conseguir manter a rotina com ela e de trabalho (desde 2018 passei a atender somente online, e meu marido também já trabalhava home office, então já estávamos adaptados a esse modelo de trabalho), nos exigiu criatividade, readaptações, como todas as famílias, morávamos fora da nossa cidade, sem nenhuma rede de apoio (desde junho retornamos para Porto Alegre, morávamos em Florianópolis por uma escolha desde 2018 por mais qualidade de vida, mas a pandemia fez revermos prioridades e voltamos para mais perto da família e amigos daqui), mas ainda assim me fez agradecer pela vida que tinha, pelo privilégio da rotina que criamos e me fez também aproveitar mais os momentos com a minha filha. Ao mesmo tempo, precisei de mais “momentos de respiro”, mas aprendi a respeitar esses movimentos, entender quando meu melhor talvez fosse sair de cena, olhar para mim, me dar um tempo, e retornar podendo ser uma mãe o mais inteira possível.
Até que ponto sua filha pode ser ela e quando você “entra em cena” para evitar uma combinação de roupa que não acha adequada, ou fazer algo que não estava no script pelo fato dela ser criança?
Esse foi, e é, um grande desafio para mim. Sou opinativa, gosto de participar de escolhas e é uma nota mental que atualizo todos os dias, de entender que meu gosto, opinião, ponto de vista é somente uma única forma de entender e enxergar o que quer que seja, e não necessariamente a melhor, tampouco a preferida da minha filha, e que não é por ela ter cinco anos que a minha opinião precisa ter mais valor que a dela. Claro, há questões que aos cinco anos ela não tem sequer maturidade para decidir, e aí entendo ser meu dever entrar em cena. Mas em assuntos e situações que ela já possui autonomia pela idade para escolher, procuro incentivar que ela decida. Provoco ela a dizer o que prefere, o que gostaria. Isso vale para roupas por exemplo (desde que não queira sair fantasiada de sereia em um frio de 2ºC do sul) até para questões comportamentais. Quando se chateia ou nos desentendemos, procuro após estarmos emocionalmente mais estabilizadas, conversar com ela, perguntar se entende que a forma como reagiu foi a melhor, como poderia agir em uma próxima situação.
Muitos pais estão ao lado, mas não estão presentes na vida dos filhos. O que essa presença decorativa provoca no emocional das crianças ao seu ver?
Acredito que nada em nossa vida deva ser encarado como sentença, a capacidade de transformação é sempre possível, mas é fato que muitas das vivências da infância deixam marcas e influenciam no desenvolvimento emocional, construção de vínculos e relacionamentos futuros da criança. São várias as mensagens que podemos passar sendo uma presença ausente: fazer com que a criança não se sinta importante, gerar um entendimento que esse amor é condicionado (a criança perceber que é digna de atenção se faz determinadas coisas, por exemplo), gerar comportamentos intensos na criança como forma de chamar a atenção, apresentar dificuldades escolares para igualmente se sentir vista e com isso se desenvolverem adultos com um baixo senso de merecimento, que cultivam relacionamentos de submissão (sejam afetivos, de amizade ou no trabalho, com colegas e chefes) e por vezes expostas à violências (seja física, emocional e/ou psicológica), dificuldade de confiar nas pessoas e em si mesmos. Em termos de construção de vínculos, qualidade e quantidade importam.
Como os pais podem ter essa consciência que você diz necessária para criar sem aprisionar ou sem cometer tantos erros?
Autoconhecimento. Não tem mágica, receita pronta ou rápida para isso. E isso requer coragem, disponibilidade interna, entrega e amor, muito amor. Estudar sobre infância, educação, vínculos também é muito importante. Passamos a vida estudando para nossos trabalhos, por que temos a pretensão de achar que não precisamos estudar para a missão mais importante e de maior responsabilidade das nossas vidas? Além disso, poder se olhar com gentileza, empatia e a expectativa da busca pela perfeição, ela é utópica e cruel.
Por que vemos tantos pais repetirem os mesmos erros que juraram que não cometeriam com seus filhos?
O nascimento de um filho é como a abertura de um portal, onde nossos filhos nos catapultam a viver o afeto em sua máxima potência, pois conforme mostra a Teoria do Apego (a qual estudo e é a base teórica que permeia meu trabalho há 16 anos), a criança necessita se sentir segura e protegida para se desenvolver, isso é biológico e inato, e que em qualquer sinal de ameaça, liga seu comportamento de apego, solicitando esse amparo da figura principal de cuidado ( sendo essa ameaça real e legítima para quem a sente, podendo ser desde fome, frio até sentimento de solidão). Ao fazer isso, a criança muitas vezes pede aos pais algo que não receberam em suas próprias infâncias, tráz à tona dificuldades vinculares dos próprios pais, e então muitas vezes pais, com pouca clareza de suas dificuldades e com autoconhecimento não muito aprofundado, tendem a repetir o padrão que receberam, por ser o mais familiar e o padrão que está internalizado dentro de si, independente de ser o melhor, é o conhecido.
Trecho do livro: Nenhuma Novidade
“Especialmente nesse período de isolamento, me peguei pensando nas coisas que precisei abrir mão, seja para mantermos a saúde, seja porque nossa rotina mudou por aqui com Maitê 24 horas por dia em casa. Aí percebi que, por mais que tenha precisado de adaptações, não foi algo inédito.
Percebi que mãe quando vem a parir já abre mão de um monte de coisa. Quiçá já durante a gravidez. Ou pelo simples fato de sermos mulheres. Cursos de gestantes não deveriam ensinar como dar banho ou trocar fralda, tampouco fazer o desserviço de dizer que o bebê tem que mamar a cada 3 horas. Deveriam compartilhar mesmo “como abrir mão da sua vida e se manter sã”, “como se reconhecer após perder sua identidade”.
Deveria ser item obrigatório. Mas isso ninguém nos conta. Não é bonitinho, corrobora para manter as mulheres em uma posição de culpas e deveres como o patriarcado precisa. Enfim, esse tal patriarcado tem me tocado muito nos últimos tempos.
Mas voltando aos meus pensamentos, percebi que, de alguma forma desde meninas, somos ensinadas a sermos as boazinhas, as educadas, a ter modos de mocinha, a dizer amém para os outros e ainda rindo, a deixar nossos quereres de lado. Mas aí nos tornamos mães, e acredito que o que torna tão penoso nesse abrir mão de si mesma não são nossos filhos.
É a reedição de nos sentirmos, mais uma vez, como na nossa história, tendo que nos deixar de lado. Não é algo inédito. Nesse silêncio da casa, me vendo sozinha ainda, entendi que ser mãe não é somente sobre abrir mão de si, é sobre abrir espaços para permitir se transformar.
Deixar que o novo nos atravesse e faça morada. É autorizar trocar a roupa da alma e se preencher de sentimentos, vivências, pensamentos agora, sim, inéditos. E por isso, às vezes, tão assustadores que escolhemos fugir, nos proteger através de medos e reclamações.
Ser mãe é um ato de fé, é ter a coragem de se jogar no vazio e ser surpreendida por aquilo que ninguém nos conta e, ainda assim, seguir inteira, mas agora, de um outro jeito desconhecido. E aí o peso pode ir embora, por mais difícil que seja. O que fica é leveza e amor”.
SERVIÇO
Quando uma Mãe Nasce: Confissões, Dores e Amores da Maternidade
Autora: Arieli Groff
R$ 45, Editora Pirililampos, 115 páginas.
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