Mãe denuncia violência obstétrica em hospital particular de Natal (RN)

Giovanna Balogh

O Cremern (Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Norte) abriu uma sindicância nesta semana para apurar um suposto caso de violência obstétrica ocorrido no início do mês em um hospital particular de Natal.

O caso ganhou grande repercussão nas redes sociais após o médico, Iaperi Araújo, divulgar sua visão sobre o parto dizendo que a paciente pediu tempero para comer a placenta, que o xingou e que saiu nua pelos corredores do hospital atrás do recém-nascido que foi levado ao berçário contra a vontade da mãe. Sem identificar o nome da paciente, o obstetra descreve a gestante como “surtada” e fala que ela “pediu uma tesoura para cortar um pedaço e um pouco de coentro pra temperar. Não tinha. Comeu sem o tempero”. Ao fim do relato o médico se diz chocado e alega que vai abandonar a obstetrícia.

O parto aconteceu no hospital Papi no dia 2 de julho e o relato do médico foi amplamente divulgado por sites e jornais de Natal sem dar, no entanto,  a versão da parturiente. O caso também foi denunciado pela Artemis (entidade de defesa ao direito da mulher), que  protocolou ofícios no Ministério da Saúde e na ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), responsável em fiscalizar os planos de saúde.  O Cremern diz que o hospital está levando os detalhes do caso para passar as informações ao conselho, que não recebeu uma denúncia da paciente, mas vai investigar o caso após a divulgação pela imprensa local.

O Maternar procurou a mãe de primeira viagem, que é uma estudante de 24 anos que cuida agora do seu recém-nascido em casa. Ela, que pede para não ter o nome divulgado, diz que tenta se recuperar de uma episiotomia (corte feito entre o ânus e a vagina) durante o parto realizado no último dia 2. “Fui coagida sob pena de ‘matar o meu bebê’ e ele falou que seria só um cortezinho. Meu pai disse que ele cortou com a tesoura e terminou de rasgar com a mão. Há alguns dias tive coragem de me ver, e descobri uma episiotomia que me rasgou até o ânus, e que me dói para sentar, para andar, dói muito na hora de ir no banheiro, mas a dor maior que eu sinto é na alma”, relata a jovem.

“A episiotomia é expressamente não recomendada pela Febrasgo [Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia], e por um documento técnico que compõe a Resolução 262/2011 da ANS. O hospital em questão é de convênio, deveria observar essa resolução e a ANS tem obrigação de fiscalizar o descumprimento dela”, diz a advogada Valeria Sousa, da Artemis.  A advogada diz que o caso de Natal  é semelhante ao caso Torres, onde a Justiça obrigou a gestante Adelir Carmem Lemos de Goes a ser submetida a uma cesárea contra a sua vontade.

O obstetra disse em entrevista para o Maternar que fez a episiotomia e que não considera o corte uma violência obstétrica. “Fiz com ela e, se fosse a minha mulher, faria também pois se o procedimento não é feito a mulher depois tem problemas de bexiga e fica se urinando”, disse o médico. Araújo afirmou ainda que tem 43 anos de obstetrícia e que decidiu não fazer mais partos após as insultas que recebeu da paciente. Questionado sobre se viu a paciente comer a placenta como relatou nas redes sociais, ele disse que não viu e que foi orientado a apagar o relato após a grande repercussão do caso.

A paciente disse que Araújo, que trabalhava como plantonista do hospital, fez um exame de toque dolorido e ficou boa parte do tempo com a mão dentro de sua vagina . “Eu reclamava que ele estava me machucando, que estava doendo, e ele dizia: se você quisesse um parto sem dor faria uma cesárea, quer? Você não quer uma cesárea, tá vendo? Tá reclamando de que? Eu reclamava da luz, do barulho e ele respondia: eu já fiz parto humanizado, com baixa luminosidade, poucas pessoas na sala, mas aqui eu não tenho tempo para isso não”, relata a parturiente.

A estudante disse ainda que pediu para mudar de posição para tentar amenizar as dores da contração, mas que foi impedida e obrigada a deitar e  ficar em posição ginecológica, que aumenta a dores da parturiente. Depois de tomar uma anestesia, a equipe que estava na sala de parto também fez a chamada manobra de Kristeller (pressão sobre a barriga da parturiente para empurrar o bebê).  “Eu sofria com a dor dos empurrões e da mão do obstetra dentro da minha vagina. Me senti estuprada. Diziam que era assim mesmo, e que se eu não me concentrasse ia matar meu bebê, que daquele jeito estava difícil, que eu não ia conseguir. Ouvi isso repetidamente durante as três horas e meia em que estive lá”, comenta.

A jovem diz que chegou ao hospital depois de 36 horas de trabalho de parto em busca de assistência  obstétrica. Desejava um parto domiciliar, mas o cansaço e a pressão da família a teriam feito desistir.  Em um  primeiro momento, conta a estudante, o médico se recusou a atendê-la e houve um bate-boca logo na admissão no hospital. “O médico me acusou de não ter feito pré-natal, mas eu fiz. Fiz uma ultrassonografia no dia anterior que mostrava que estava tudo ótimo com o meu filho”, comenta.

As discussões e xingamentos seguiram durante todo o parto, segundo a parturiente. “Pedi que não cortassem o cordão umbilical do meu filho e o obstetra ficava debochando de mim dizendo que eu não tinha conhecimento algum”, comenta. Estudos mostram que o cordão umbilical só deve ser cortado após parar de pulsar pois devolve ao bebê o sangue e com isso protege ele de anemia.

Entre uma contração e outra, a estudante disse que a pediatra dizia que assim que o bebê nascesse iria ser examinado e levado ao berçário. “A pediatra começou a gritar comigo dizendo que tinha que examinar o bebê, medir, pesar, fazer testes, levar pro berçário, e eu disse que não deixava, ela me gritando e chamando de louca disse que eu não tinha autoridade pra decidir nada sobre o meu filho, eu respondi que o filho era meu e que ninguém o tiraria de mim”, comenta.

SEPARADA DO BEBÊ

Para a estudante, o mais difícil não foi o que enfrentou no parto, mas por ter sido impedida de ficar com o recém-nascido logo que nasceu. “Ele veio para o meu colo, todo lindo, respirando e chorando bravamente. Enquanto eu tentava dizer a todo mundo que ele  estava  bem, a pediatria tirou ele do meu colo sem que eu pudesse amamentá-lo”, comenta. Portaria do Ministério da Saúde determina que todo bebê saudável deve ir direto para o colo da mãe e ser amamentado na primeira hora de vida.

A mãe conta que  a pediatra pegou o bebê e o aspirou. Em seguida, a criança foi levada ao berçário. Enquanto a gestante tentava rever o bebê, o  obstetra puxou a placenta sem esperar a dequitação natural.  A placenta  é um órgão responsável por envolver e alimentar o feto durante toda a gestação. Depois do nascimento do bebê, o próprio corpo da mulher se encarrega de fazê-la nascer também, com algumas contrações.

“Quando minha placenta saiu eu gritei: a placenta é minha! O médico ia jogá-la no lixo. Ele ainda ironizou querendo me apresentar à minha placenta, mas nessa hora eu só pensava em ir buscar meu filho”, conta. A legislação brasileira, através de uma regulação da ANS, dispõe que o membro pode ser solicitado e levado pela pessoa, e cabe ao hospital acondicionar o órgão corretamente. A estudante conta que não comeu a placenta, que ela está guardada no freezer de sua casa, e que ainda não sabe qual destino será dado a ela.

“Eu estava transtornada. Tentaram me impedir de sair da sala de parto, pois eu estava nua. Foi então que me deram meus trapos sujos de sangue, vesti ali no corredor mesmo, e fiquei gritando na frente do berçário, de portas trancadas, gritando que queria meu filho comigo.” Após discussões, a criança foi entregue ao pai da parturiente pela equipe do berçário após ele ameaçar arrombar a porta. A mãe e o bebê foram para um quarto onde o recém-nascido foi enfim amamentado. Em seguida, ela e o bebê deixaram o hospital. Os dois passam bem. “O que me foi arrancado jamais terei de volta. Foi o dia mais pavoroso da minha vida”, diz.

O médico disse que não se recusou a atende-la, mas que questionou por ela não ter um obstetra acompanhando a gestação. Araújo afirmou que pede desculpas caso tenha feito algo errado, mas diz que foi xingado pela paciente e que o desabafo na internet foi feito para que outros médicos saibam o que ele enfrenta nos plantões.

“Ela queria que eu ficasse três horas lá de pé só olhando para ela. Me senti um inútil, como se eu fosse um leigo, um ignorante. Essas mulheres que defendem o parto domiciliar não podem regredir o avanço da medicina. No hospital, tenho um protocolo a seguir”, afirmou o médico.  Araújo afirmou ainda que pelo convênio recebe cerca de R$ 400 pelo parto enquanto uma doula (acompanhante que dá suporte para a gestante) recebe, segundo ele , R$ 2.000. O médico afirma ainda que fez “tudo o que a paciente queria”. O Maternar não conseguiu contato com a pediatra que atendeu o caso. Procurado, o hospital ainda não se manifestou sobre o assunto.

O deputado federal Jean Wyllys (PSOL) tomou conhecimento do caso e informou que vai encaminhar uma denúncia ao presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias.  A ideia, segundo o parlamentar, é “investigar os fatos e tomar as providências cabíveis”. Ainda segundo o deputado, tramita na Câmara um projeto de sua autoria, feito com parceria da Artemis, que garante à gestante o direito ao parto humanizado e apresenta soluções legais para o enfrentamento da violência obstétrica seja qual for o tipo de parto escolhido pela gestante.

Procurada, a ANS ainda não se manifestou sobre o assunto. O Ministério da Saúde informou que, por se tratar de um hospital particular, não tem nenhuma medida a ser tomada sobre o caso.