Violência obstétrica também ocorre em caso de aborto espontâneo

Giovanna Balogh

Muito se fala sobre violência obstétrica e como ela está presente durante o pré-natal e o parto. Durante a audiência pública realizada nesta segunda-feira (17) no Ministério Público de São Paulo, foi mostrado um outro tipo de violência que não é tão denunciada: a que acontece após um aborto, sendo ele espontâneo ou não.

A advogada Valéria Sousa foi uma das sete mulheres que deu seu depoimento durante o evento. Ela conta que em março do ano passado sofreu um aborto espontâneo em casa. Após ter uma forte hemorragia, ela desmaiou e o marido acionou o serviço de emergência para levá-la até um hospital. “Os socorristas antes de verem os meus sinais vitais ficaram questionando onde estava o medicamento para abortar que eu tinha tomado”, relata.

Valéria, que foi levada a um hospital particular da Grande SP, diz que durante todo o trajeto sofreu um verdadeiro interrogatório e que ele não cessou nem mesmo no hospital. “Me separaram do meu marido e nós dois tivemos que responder várias perguntas. Eles procuravam evidências de que eu tinha provocado o aborto”, comenta a advogada, que pede não divulgar o nome do hospital onde ocorreu o caso.

Segundo Valéria, a morte do bebê havia sido constatada dias antes em uma ultrassonografia. “Nesse exame de rotina vimos que o coração do bebê não batia mais. Resolvi esperar a expulsão natural do bebê, mas mesmo mostrando o exame, duvidaram de mim e omitiram socorro”, comenta. A advogada diz que negaram até o medicamento de hidratação dizendo que o convênio “não cobria” e que ela seria removida a um hospital público.

“Falei que pagaria particular, mas me negaram. Fiquei cinco horas na sala de triagem sem atendimento. Cheguei a convulsionar no hospital e ninguém me atendeu. Alguém fez um pré-julgamento a meu respeito e determinou que não merecia ser atendida”, relata a vítima, que assinou um termo de responsabilidade para ter alta.

Somente então ela saiu do hospital com o marido em busca de atendimento em outra unidade de saúde, onde recebeu toda assistência necessária. “ A mulher é tratada como criminosa pelo aborto, mesmo quando ela não provocou. Eles estavam mais preocupados em chamar à polícia do que salvar a minha vida”, relata.

A defensora pública Ana Rita Souza Prata, diz que as mulheres têm ainda mais dificuldade em denunciar a violência obstétrica após um aborto. “Em caso de abortamento, a mulher está passando por uma situação muito traumática, mesmo tendo sido ele provocado ou não”, diz.

A defensora ressalta que a equipe médica tem que atender a paciente mesmo se o aborto foi provocado e que ela pode responder criminalmente se por acaso se omitir. “Nesse caso, a violência obstétrica acontece pois está associada a um julgamento moral”, diz Ana Rita, que é coordenadora auxiliar do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública. Apesar do aborto ser considerado ilegal, o médico tem o dever de sigilo nesses casos.

A representante do Cremesp na audiência, a obstetra Roseli Nomura, disse que a violência obstétrica tem sido pauta dos debates internos da entidade médica. “Estamos preocupados não só em chamar a atenção para isso, que tem sido pauta nossa, como também quanto à formação do próprio medico, que tem de ter uma formação mais humanista a uma série de fatos que têm sido denunciados”, afirmou.

Já a  coordenadora geral de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, Maria Esther Vilela, diz que existem ameaças aos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres com, por exemplo, o projeto do Estatuto do Nascituro. “Temos que ter muito cuidado na distinção de um feto como um ser independente da saúde da mulher. Temos que ter cuidado pois cria uma independência do feto de uma mulher como se essa mulher não tivesse vida própria”, diz.

A secretária adjunta da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres, Dulce Xavier,  diz que  é preciso resgatar a questão sobre o direito de escolha das mulheres. “Elas sofrem violência para parir, quando procuram atendimento para interromper uma gravidez, mesmo quando é decorrente de um estupro ou qualquer outra questão. São tratadas como criminosas”, relata. Dulce ressaltou a importância das mulheres terem direito e acesso aos métodos contraceptivos, como pílula do dia seguinte e DIU sem que questões religiosas atrapalhem a saúde pública.

Durante a audiência pública, foi citado também o caso de  Aline Pimentel,28. A jovem, negra, moradora de Belford Roxo, na Baixada Fluminense que, em 2002, estava grávida de 27 semanas e procurou uma casa de saúde particular porque não estava se sentindo bem. Receitada, ela voltou dias depois com uma piora no quadro de saúde, apresentando hemorragia e com o feto morto. O parto foi então induzido, mas Aline sofreu nova hemorragia, foi transferida para um hospital público e morreu.

O caso de Aline ganhou divulgação internacional. O comitê da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw) da ONU condenou o governo brasileiro, em 2011, a reparar a indenizar a família da paciente.

OUTRAS VÍTIMAS

O evento também contou com o relato de outras vítimas de violência obstétrica, entre elas, Adelir Carmen Lemos de Góes. Conforme revelado pela Folha, em abril deste ano a gestante foi submetida a uma cesárea contra a sua vontade após médicos acionarem a Justiça para que ela fosse retirada à força de casa e levada a um hospital de Torres, no Rio Grande do Sul. O fato gerou uma série de protestos e vigílias em várias capitais brasileiras.

O evento também contou com a participação do deputado federal  Jean Wyllys, que é autor do projeto de lei 7633/2014, que prevê reduzir os índices de cesáreas e ainda oferecer atendimento humanizado para todas as mulheres durante o parto.

No final do evento, foi feita uma carta sobre violência obstétrica que será distribuída para os promotores terem mais conhecimento e atenção sobre essa questão.